ILÍADA (blues para a infância)

 

OS POMOS DE OURO

 

Subornávamos as cercas
de arame farpado,
abríamos picadas e trincheiras
para nossos saques

 

(as laranjas do Seu Hercildes
eram as mais cobiçadas).

 

Perfurávamos o silêncio
entre ganidos e galhos
e olhos de chimango
dos sentinelas.

 

Nunca houve muralhas
entre nós e os pomares
da vizinhança.

 

Também nunca se pôs de permeio
a Discórdia
em nossas partilhas.

 

Todas as frutas eram belas
frente ao proibido.

 

CINE ÍLION

 

Aos 8 anos sitiamos, meus amigos e eu,
o único cinema da cidade.

 

(nessa idade vagina era rosa
espocada na enciclopédia, estática.
Lasciva figura onde olhos curiosos)

 

Quando anoitecia o sábado,
lá estávamos.

 

Os adultos se perfilavam,
como postes móveis,
na bilheteria. Nós – soldados
da vontade, sitiávamos.

 

A paciência foi nosso estratagema.
Fomos impassíveis:
lutávamos durante o dia
e a noite recolhíamos nossos cadáveres
às tumbas do sono e dos sonhos.

 

Assim, conquistamos o tempo
e a vitória:

 

Aos 18 anos entramos
– cabeças erguidas e coragem –
em nosso primeiro
filme de sacanagem.
 

HELENA

Nossos cavalos eram de pau.
Rédeas de sisal ou de algodão.

 

Nosso acampamento
era no fundo do quintal.

 

De lá a arquitetura de nossas lendas,
nosso consolo e nosso solo sagrado.

 

As parlendas de nossos medos
(amanhã é domingo
pé de cachimbo).

 

De lá nosso pensamento
(Na primeira fila, Helena.
Tirava 10 em matemática.
Mais bela que a professora Leda)
era asa de borboleta,
cambalhotando o ar.

 

(Manoel desenterrava
a caixinha de punheta
junto ao pé de goiabeira)

 

Do nosso quintal,
– tão muito maior
que o mundo –
de olhos escurecidos,
alávamos nossos cavalos
e resgatávamos
nossos amores impossíveis.

 

 

 

 


COMPADRE HEITOR

 

Os grandões eram malvados.

 

Um dia pegaram
o Heitor mijando
na beira da sanga
e o arrastaram na areia.

 

Imploramos por sua liberdade.
Demos nossas bolitas e bodoques.
Eles queriam mais:

 

– Beija aqui, pirralho!

 

E apontava aquele
pé sujo.

 

Caminhei até lá.

Naquele dia eu fui
muito maior que eles.


TODOS FOMOS HERÓIS

 

Todos fomos heróis:

 

O Carlos Galinha uma vez
arremessou um estrume seco no ar,
acovardando um quero-quero
que acovardava nossa coragem.

 

O Lucinho governava,
com maestria, seu bodoque
(não havia pássaros voando
em nossas mãos quando
de nossas caçadas).

 

O Pipoca era o mais velho.
Segurança contra os grandões
(ele o nosso Aquiles
e nos seus mirmidões).

 

Eu, inclusive, certa feita
esfolei as costelas
e cravejei com silêncio
as lágrimas,
em confronto com os olhos
assustados dos demais.

 

O Fofo, o Daniel, o Toco,
o Lisandro, o Negrinho…
Todos fomos heróis,
de um jeito ou de outro.
Hoje, procuramos nossas tumbas.